O Projeto de Lei enviado pelo Governo do Estado de
Mato Grosso à Assembleia Legislativa, sob a Mensagem nº 51/2025, propõe a
criação de um regime tributário especial denominado “Regime Cidades
Gêmeas/ICMS-MT”, referente a lojas francas (free-shops), instaladas em
municípios mato-grossenses fronteiriços com cidades estrangeiras. A medida
tem como principal fundamento a autorização prevista no Convênio ICMS 91/91
do CONFAZ, e objetiva estimular o comércio na região Sudoeste-Oeste do
estado, especialmente na cidade de Cáceres, reconhecida oficialmente como
“cidade-gêmea”.
O município de Cáceres foi oficialmente incluído
na lista de cidades-gêmeas por meio da Portaria nº 1.080/2019, editada pelo
Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR). A decisão teve como base um
estudo técnico elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA),
que analisou os critérios de interdependência transfronteiriça.
Desta forma, Cáceres tornou-se o primeiro município
do Estado de Mato Grosso a obter essa classificação, que possui elevada
relevância para a implementação de políticas públicas coordenadas em áreas de
fronteira, incluindo comércio, segurança, infraestrutura e desenvolvimento regional.
O enquadramento como cidade-gêmea habilita o município a participar de
programas federais específicos e a se beneficiar de regimes tributários
diferenciados, como o de free-shops, previstos em normas federais e convênios
do CONFAZ.
Todavia, a proposta
legislativa do Poder Executivo que institui o regime tributário denominado –
REGIME CIDADES GÊMEAS/ICMS/MT, aplicável as lojas francas, suscitam algumas
implicações de ordem jurídica, econômica, social e prática; que demandam
avaliação minuciosa.
Nesse contexto, à luz de uma
análise preliminar sob os prismas do Direito Constitucional, Tributário e viés socioeconômico
específicos do município e da região abrangida — à vista de dados e evidências
disponíveis —, impõe-se o aprofundamento técnico e científico do debate.
1.considerações
jurídico-constitucionais e tributárias.
Merece atenção crítica o teor do artigo 2º do
Projeto de Lei, bem como de outros dispositivos correlatos, ao estabelecer que
a fruição da isenção do ICMS fica condicionada ao recolhimento compulsório de
5% (cinco por cento) do valor da operação beneficiada ao Fundo de Apoio às
Ações Sociais de Mato Grosso (FUS/MT).
Determinada exigência do artigo 2º, configura na
prática, a substituição parcial do tributo isento por uma contribuição
estadual, que suscita dúvidas quanto à natureza jurídica da cobrança, à sua
validade formal e material, e, ainda, à compatibilidade com os princípios
constitucionais da legalidade tributária, da tipicidade e da vedação ao
confisco.
Esse modelo híbrido de benefício condicionado ao
pagamento, pode ser interpretado como uma exigência indireta de tributo
travestido de contribuição parafiscal (tributo indireto), o que compromete a
segurança jurídica do regime lojas francas e pode, inclusive, ensejar
questionamentos de natureza constitucional e infralegal, pois trata-se de uma descaracterização da própria isenção.
Ademais, a exigência
de um percentual sobre uma operação já isenta de ICMS pode ser vista como uma
forma de "taxar" a isenção, o que levanta questionamentos. Ora, se a isenção tem como objetivo desonerar uma
determinada operação, a exigência de um pagamento (ainda que a um fundo) sobre
essa operação, pode esvaziar o sentido da isenção, transformando-a em uma mera
redução de carga tributária, mas não em uma dispensa total.
Ainda, o artigo 3º do Projeto
de Lei que institui o Regime Cidades Gêmeas/ICMS-MT, ao tratar das
consequências pela falta
ou insuficiência de recolhimento ao Fundo de Apoio às Ações Sociais de Mato
Grosso (FUS-MT), levanta alertas jurídicos e operacionais que
merecem análise aprofundada, das consequências deste. Denota-se no artigo que o não recolhimento — ainda que parcial
ou por erro — implica a perda automática da isenção, aplicando-se a alíquota
integral do imposto. Ao prever que a mera inadimplência de um
encargo financeiro implica a automática
revogação da isenção e a cobrança da alíquota cheia, configura uma penalidade indireta,
o que contraria o princípio da legalidade estrita em matéria tributária.
Interpreta-se que o artigo 3º do Projeto de Lei em
questão introduz risco relevante de insegurança jurídica e afronta ao
princípio da proporcionalidade, ao estabelecer, de forma automática e sem
qualquer gradação o contraditório, com a perda da isenção do ICMS em decorrência
do inadimplemento — ainda que parcial ou meramente material — da obrigação
acessória de recolhimento do (FUS-MT).
A previsão normativa de aplicação imediata da
alíquota cheia do imposto, sem a observância do devido processo administrativo-fiscal
e da possibilidade de regularização espontânea por parte do contribuinte,
contraria os princípios constitucionais da razoabilidade e da segurança
jurídica, consagrados na CF/88. Na prática empresarial, é comum a ocorrência de
situações de inadimplemento involuntário, como erros materiais, falhas
operacionais ou divergências interpretativas quanto à forma e ao momento de
recolhimento.
Assim, penalizar tais eventos com a revogação
integral do benefício fiscal, sem qualquer mecanismo de advertência,
notificação prévia ou possibilidade de saneamento da irregularidade, configura rigidez
normativa excessiva e desalinho com os paradigmas contemporâneos da
administração tributária, que cada vez mais se orientam por modelos de
conformidade cooperativa e incentivo à autorregularização.
Nessa linha de reflexão jurídica, a estrutura
sancionatória desproporcional prevista no artigo 3º tende a produzir
efeitos contraproducentes, como o desestímulo à adesão ao regime especial,
a inibição de investimentos produtivos em zonas fronteiriças e a insegurança
na organização empresarial das lojas free-shops, comprometendo os objetivos
centrais da política pública que se pretende implementar.
Diferentemente do modelo adotado no Projeto de Lei
Complementar aprovado, observa-se que os Estados do Rio Grande do Sul,
Paraná e Santa Catarina regulamentaram a instalação das lojas francas
exclusivamente por meio de decreto estadual, em estrita observância ao
disposto no Convênio ICMS nº 91/91, sem a imposição de quaisquer
encargos financeiros adicionais, tais como taxas ou contribuições, assegurando,
assim, um ambiente normativo estável, juridicamente seguro e atrativo para
investidores. Dito isso, a condição financeira imposta a lojas
francas em Cáceres pode caracterizar desvirtuamento da isenção tributária e
comprometer atratividade do modelo frente a experiências de outros estados.
Em
síntese, o projeto carece de ajustes jurídicos para garantir sua conformidade
constitucional e eficácia prática do modelo de lojas francas. A imposição de
contribuições e a estrutura sancionatória desproporcional, comprometem a
viabilidade jurídica e econômica do modelo.
2. considerações
socioeconômicas e desenvolvimento regional
2.1 Impactos econômicos e riscos concorrenciais
O reconhecimento de Cáceres como cidade gêmea, assenta-se,
prioritariamente, em seu potencial de indução ao desenvolvimento econômico
regional, articulado à sua posição geográfica estratégica na faixa de fronteira
oeste do Brasil. O Estudo Técnico do Ipea evidencia que iniciativas como a
isenção tributária — notadamente do ICMS, constitui instrumento central para
dinamizar a economia local e promover a integração logística e comercial com a
Bolívia e, por extensão, com o mercado do Pacífico.
Ainda, esse reconhecimento, exige um conjunto
multidimensional de requisitos. Pela
pesquisa empírica conduzida pelo Ipea, há fluxo transfronteiriço
significativo (infraestrutura de controle fronteiriço federal - Receita
Federal, Polícia Federal, Gefron) e, do ponto de vista da infraestrutura,
destaca-se a existência de ativos estratégicos, como a rodovia BR-070
que conecta diretamente vários municípios; projetos como a Zona de
Processamento de Exportação (ZPE); a ligação intermodal até o Pacífico
via Bolívia, que potencializam a inserção de Cáceres em cadeias logísticas
regionais e internacionais. A atividade turística, especialmente com foco na pesca
esportiva, contribui para a economia local, reforçada por fluxos de
visitantes no comércio.
Os indicadores socioeconômicos de Cáceres
corroboram a necessidade de atenção por parte do Poder Público. Com população
estimada em 89.681 habitantes (IBGE/2022), a economia municipal é
majoritariamente baseada no setor de serviços, no percentual de 51,09% da
composição econômica; administração, defesa, educação e saúde em 30,48%; na
agropecuária extensiva percentual de 9,48%; e indústria em 8,95%. Esse
arranjo e conjuntura econômica do município demonstram a extrema necessidade de
indução de políticas que promova o crescimento expressivo do setor turístico, comércio
e varejo.
Ademais, conforme dados do Cadastro Único, Cáceres
apresenta o maior número absoluto de cadastrados, sendo de 50.229 pessoas,
o que representa cerca de 43% em situação de pobreza e 29% em baixa renda,
totalizando 72% da população cadastrada em condições de vulnerabilidade.
Os dados indicam forte dependência de políticas sociais, com concentração
significativa em famílias com renda inferior a meio salário-mínimo per capita. Tabela
explicativa com números abaixo.
|
Pessoas
Cadastradas e Famílias em Situação de Pobreza |
Pessoas
Cadastradas e Famílias de Baixa Renda |
Pessoas
Cadastradas e Famílias Acima de ½ de Salário-Mínimo |
Total |
Cáceres |
21.406
(43%) |
14.630
(29%) |
14.193
(28%) |
50.229 |
Fonte: Elaboração própria, a partir de
dados extraídos do Programa Bolsa Família e CadÚnico.
Cáceres,
apesar de seu papel como polo regional estratégico, revela um cenário
socioeconômico preocupante. O município concentra o maior número absoluto de
pessoas cadastradas no CadÚnico (50.229), das quais 72% em condição de
vulnerabilidade social (pobreza e baixa renda). O PIB per capita é apenas
intermediário, e o Índice FIRJAN de Desenvolvimento Municipal (IFDM) permanece
aquém do desempenho observado em municípios vizinhos, como Pontes e Lacerda.
Esses dados evidenciam a urgência de políticas públicas robustas voltadas à
inclusão social, à geração de oportunidades e ao fortalecimento das atividades
econômicas locais, com foco na superação de desigualdades e na construção de um
desenvolvimento regional mais equitativo.
Diante
dos elevados índices de vulnerabilidade e da longa trajetória histórica de
Cáceres — com seus 247 anos de existência —, a política de isenção tributária
prevista no projeto das lojas francas deve ser compreendida não apenas como um
mecanismo fiscal, mas como instrumento estratégico de indução ao
desenvolvimento regional. Trata-se de um eixo estruturante para a promoção
do fortalecimento socioeconômico local. Mais do que reduzir encargos, essa
política tem o potencial de dinamizar a economia cacerense, mitigar
desigualdades territoriais, consolidar conexões transfronteiriças sustentáveis
e fomentar a inclusão produtiva em áreas historicamente negligenciadas pelas
políticas de desenvolvimento. É uma medida que alia justiça fiscal à
responsabilidade com o futuro regional.
O desafio central consiste em
alcançar um ponto de equilíbrio entre a concessão de incentivos fiscais
legítimos, o respeito aos ditames constitucionais e a promoção do
desenvolvimento regional sustentável — tudo isso sem comprometer a segurança
jurídica, nem abrir margem para distorções interpretativas, litigiosidade
excessiva ou instabilidade normativa.
Autora: Adriane A. B. do Nascimento. Advogada. Especialista em
Direito Societário, Direito do Trabalho e Direito Tributário, é Mestra em
Economia, Políticas Públicas e Desenvolvimento pelo Instituto Brasileiro de
Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), em Brasília/DF. É também registrada no
Conselho Regional de Economia sob o nº 0001/MT. Membra-efetiva da Comissão de
Direito Tributário da OAB Cáceres-MT. Foi premiada em primeiro lugar na
categoria Artigo Técnico-Científico no “XXIX Prêmio Brasil de Economia – 2023”,
promovido pelo Conselho Federal de Economia (COFECON), com o trabalho
intitulado “Crescimento liderado pelas exportações ou exportações lideradas
pelo crescimento no Estado do Mato Grosso?”. Em 2024, obteve o terceiro
lugar na categoria Artigo Temático, no “XXX Prêmio Brasil de Economia – 2024”,
com o artigo “Uma Análise do Impacto das Variáveis Macroeconômicas nas
Falências Totais das Empresas Brasileiras (1995-2023)”. Consultora da
Comissão Especial de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB (CFOAB) - Gestão
2022/2024. Atualmente, é Doutoranda em Direito pelo Instituto Brasileiro de
Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), em Brasília/DF.
Referências
FEDERAÇÃO DAS INDÚSTRIAS
DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Índice FIRJAN de Desenvolvimento Municipal (IFDM).
Rio de Janeiro: FIRJAN, [2025?]. Disponível em: https://www.firjan.com.br/ifdm/. Acesso em: 21 maio 2025.
BRASIL. Ministério da
Cidadania. Painel de informações do Cadastro Único para Programas Sociais do
Governo Federal. Brasília, DF: Ministério da Cidadania, [2025?]. Disponível em:
https://aplicacoes.cidadania.gov.br/ri/pbfcad/painel.html. Acesso em: 21 maio
2025.
INSTITUTO BRASILEIRO DE
GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Indicadores sociais: Cáceres (MT). Rio de Janeiro:
IBGE, [2025?]. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mt/caceres/pesquisa/21/28134?tipo=grafico&indicador=28141. Acesso em: 21 maio
2025.
Instituto de Pesquisa
Econômica e Aplicada (IPEA). Estudo Técnico Sobre a Viabilidade de Criação de
“Cidade Gêmea” Cáceres (Brasil) – San Matías (Bolívia). Coordenação: Bolívar Pêgo. Disponível
em https://portalantigo.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=35486
Supremo
Tribunal Federal. https://constituicao.stf.jus.br. Acesso em: 21 maio
2025.
Revistas
Economistas. COFECON – Ano XIV – Nº 47, janeiro – março de 2023. Uma breve
análise econômica do município de Cáceres entre 2010 e 2020. Pág. 52/60.